A GRAVURA NA CONTEMPORANEIDADE
Desafios, diálogos e estratégias de mediação
Provavelmente já toda a gente fez uma Gravura. Quem não deixou o seu rastro na areia molhada de uma praia, brincou com carimbos ou riscou um lápis de cera sobre uma folha com uma moeda por baixo? Ou até mesmo transferiu com grafite a textura de uma folha de árvore para o papel? Ou ainda, imprimiu uma fotografia digital do seu filho recém-nascido?
Estes vários exemplos simples e que podem ser realizados por qualquer pessoa no dia-a-dia, servem para demonstrar como a gravura está presente no nosso quotidiano, mesmo sem termos bem noção de que a estamos a produzi-la ou a utilizá-la. Seja ela uma gravura mais convencional, na qual apenas transferimos a textura de uma superfície para o papel, quer se trate de uma gravura digital quando imprimimos uma imagem fotográfica para o papel, em ambas as situações, podemos afirmar que estamos a produzir gravuras.
Gravar, parece assim, ser uma coisa fácil e banal já que fazer uma impressão requer gestos tão simples e materiais tão elementares como a argila, a mão, os pigmentos, moldes, cortes, corrosões, etc. A palavra impressão abrange tantas práticas e tantos resultados que podemos detectar processos de impressão nos tempos mais remotos, como por exemplo, as gravuras rupestres, os dinossauros que deixaram impressões na argila ou mesmo um qualquer fóssil.
Efectivamente, pensar em gravura não se restringe a pensar em papel, prensa, matriz, mas sim a um pensamento mais vasto como, por exemplo, pensar num contacto que leva à possibilidade de outra forma, um gesto que responde a outro e esta resposta modifica-se e abre-se em seguida, como se de um pensamento se tratasse, pensar gravura, como pensar desenho. Neste sentido, o pensamento não se descreve como pensamento da gravura, mas como gravura do pensamento, tendo a mesma plasticidade, fluência e consistência que os movimentos no processo da gravura.
Como se pode ver, a complexidade dos processos na gravura, nas questões sobre impressão, contacto, matriz, material, imagem, não são apenas de ordem retiniana, técnica, matérica ou material, ela deixa-nos em suspenso sobre qualquer conclusão precipitada sobre este assunto, por darmos preferência a um olhar superficial sobre o que a gravura suscita, não aprofundando e compreendendo os horizontes físico e intemporais da sua abrangência.
A asa de uma libélula pode ser a fossilização mais longínqua no tempo, como também pode estar conectada com uma sobreposição de traços contemporâneos. Uma imagem pode assim, expor-se num tempo contraditório intrincado na mesma superfície. Os diferentes níveis dos nossos pensamentos são também sobrepostos, como na ideia de anacronismo ou de intercalação que trabalhamos nas camadas das gravuras.
Olhar a arte como um pensamento-gravura ou como uma gravura-pensamento e não querer guiá-la para uma determinação, é uma tentativa de percebê-la através dos seus planos. A gravura compõe-se de várias experiências: passagens, camadas, provas de estado, provas de artista, provas únicas, provas de cor, transferências, pensamentos, sensações, impregnações, escavações, capturas, fissuras, ausências, formas, contra
formas, reentrâncias, distâncias, contactos subtis, intensos, esmagadores, aveludados, cortantes e uma infinidade enorme de muitos outros. Assim, a experiência na gravura torna-se numa experiência nascente que se destaca do todo em sobreposições, o que origina uma experiência de sensações tácteis e pensamentos. O que se passa entre o espaço de uma superfície e o da matriz é uma espécie de inscrição de forças na forma de gravura ou de gravura-pensamento. A percepção destas formas desencadeia de novo novas forças. Assim, é preciso que haja um transporte ou um meio de fazer surgir as formas, uma película, um plano ou uma pele onde possa circular essa energia do movimento das imagens.
Toda esta complexidade que a gravura (tão simples no conceito) origina, ampliou o seu campo de acção sendo por isso uma obra aberta. É nesta linha de raciocínio que os novos media se complementam e ajudam a gravura a manter a sua autonomia no contexto da arte contemporânea.
Apesar da reprovação de uns e do consentimento de outros, do diálogo construtivo ou da sua total ausência, a arte da gravura não pára e continua impávida e serena a sua cavalgada, arrastando consigo todas as suas afilhadas. De facto, se o relacionamento da gravura com a fotografia, provocou a ira e o descontentamento de muitos, hoje, em pleno século XXI, o hibridismo da gravura com outros media intensificou-se e deu origem a novas convulsões e atritos sem dúvida ainda maiores do que os anteriores. Daqui resultaram novos modelos de gravura próximos das concepções gráficas do offset, da gráfica urbana, das instalações multimédia, das composições digitais computorizadas e impressas em vulgares impressoras, da utilização de programas e softwares como o Photoshop ou o Corel Draw.
Ao aliar-se hoje a estes novos media digitais, resultam daqui novas experiências visuais com potencialidades renovadas para a gravura. A sua matriz que no passado era de metal, de pedra ou madeira, adquire agora características imateriais de formato digital e o pixel da imagem substitui o ponto, a linha e a mancha gravados pela acção física do gravador ou por meios alquímicos de ácidos e vernizes, integrando imagens virtuais em suportes informáticos, deixando o papel, numa primeira fase, fora do processo. O resultado destas simbioses mediáticas pode adquirir a forma de instalações, imagens digitais, web-arte, entre outras. Esta nova realidade contemporânea promoveu na gravura a passagem da imagem visual gráfica, impressa em papel para uma imagem visual virtual que existe em primeiro lugar nos monitores dos computadores. Esta passagem para o campo virtual é um tanto drástica, pois passa do peso do átomo do papel e do átomo da tinta para o peso das imagens virtuais, ou seja, para a virtualidade dos bits e dos pixéis, da matéria para a energia e isto é, de facto, uma transformação radical.
O artista gravador de hoje, de certo modo, confronta-se com uma virtualidade que se apresenta como uma janela aparentemente rectangular (o ecrã do computador), como uma nova versão de espaço pictórico, mas que o não é, visto que os elementos de transformação, os elementos plásticos de manipulação, as dimensões que estão envolvidas ultrapassam muito as duas dimensões da página branca do papel e o indivíduo que utiliza estes novos meios confronta-se com situações verdadeiramente inesperadas. Esta “leveza” na expressão criativa, ausente de matéria, confere à criação experimentalista um registo fundamental para a sua inequívoca contemporaneidade, lembrando automaticamente os espaços do “vazio” e aproximando a sua operacionalidade
no meio, aos conceitos de “Obra Aberta” de Umberto Eco, ou aos conceitos
paradigmáticos da arte contemporânea teorizados por Rosalind Krauss que nos fala dessa conquista da arte do espaço vazio e da ausência de obra.
Esta nova gravura digital invade o nosso quotidiano cultural, manifestando o seu vanguardismo pelos museus e galerias de arte contemporânea, nos meios urbanos em forma de arte pública e em bienais a ela dedicadas, mostrando-se viva e em constante transformação, tal como aconteceu sempre na sua história. Ela revela-se novamente como “obra aberta”, não fechando as suas confrontações em si mesma e permitindo sempre ao artista ou fruidor inovar e incrementar novas possibilidades na sua dialéctica. Esta revolução operativa na qual a gravura sobrevive, conquistando novos espaços de dimensão contemporânea, vem contrariar aqueles que a aniquilam e a denominam, injustamente, como arte menor. Talvez estes não percebam o seu determinante contributo na história da arte e da humanidade, e por isso vêm-na apenas como aquela arte artesanal ao serviço da imprensa, não compreendendo ou desconhecendo os passos por ela dados rumo à sua autonomia.
Verifica-se então que no mundo da gravura sempre se evidenciou a constante mutação dos processos de impressão gráfica ao longo da história da arte, ora mais próximos da gravura tradicional, ora mais distantes e em profunda ruptura. Pelo exposto, através da análise das obras mais importantes de gravura e da sua evolução até aos nossos dias, ela delineou um trajecto em direcção a uma atitude que expande os seus limites, não de uma forma subversiva, mas coerente com a sua necessidade de autonomia e subsistência enquanto arte viva. O grande desafio para a gravura, seja ela tradicional ou híbrida, consiste pois, em manter vivos os pressupostos históricos da sua génese, sem renunciar às transformações ditadas pela própria evolução da história da arte, auto valorizando-se com esses contributos contemporâneos. Só assim, ela poderá reivindicar um papel de importância similar ao das outras linguagens.
Os artistas e as instituições não têm que seguir um código imposto. As pessoas mudam, o mundo muda, a sua visão do mundo muda e a arte adapta-se às mudanças e dá o seu contributo para a melhoria do mundo e da sociedade, do homem por dentro e também por fora. Esse aperfeiçoamento da sensibilidade é um projecto aberto que não precisa de seguir um código específico, nem está tão pouco dependente de linguagens artísticas ou questões técnicas. Enfrentamos hoje na arte, novos processos de produção industrial e electrónica, de circulação massiva e internacional e, consequentemente, novos tipos de recepção e apropriação. Na medida em que cresce o domínio do homem sobre esses infinitos meios de informação, opera-se uma mudança no próprio homem e na percepção daquilo que ele produz. A chave, então, está no processo de selecção e interpretação da informação.
Os eventos e as Bienais de Arte podem fornecer essa chave, servir de interface entre o objecto cultural do conhecimento erudito e o quotidiano. Esta chave pode materializar-se através de uma mais clara informação dos diferentes públicos, sobre os aspectos relacionados com as mensagens da arte exposta, dos fundamentos das temáticas escolhidas, das polémicas e relevâncias políticas, sociais e culturais levantadas pelas suas acções na sociedade, pelo uso e emprego de novas tecnologias audiovisuais que penetrem com maior facilidade nos públicos menos atentos e ávidos de estímulos mais interactivos.
O diálogo com a arte vai além do exercício experimental, transformando-se num prazer estético na vida do homem, na medida em que se pode educar alguém por meio da arte, pois ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos
mundos para além do nosso umbigo. Neste sentido, torna-se incontornável uma maior informação do público, encontrando meios que estejam à altura da sua compreensão, e não responder às perguntas com mais perguntas, realizar sessões públicas com esclarecimentos sobre os artistas, explicar e fundamentar a razão das escolhas e, principalmente, devolver ao público a possibilidade de reencontrar a maravilha, essa percepção que vem da contemplação de um objecto que conciliou a perfeição da forma com a perfeição da ideia. Faz falta, hoje, o exercício da admiração, da empatia. Algo muito na contramão do barulho e da banalidade do quotidiano, das soluções fáceis e descartáveis da cultura de tipo “shopping center”.
Finalmente, convidar os artistas locais para confraternizar com os artistas de fora, para um mútuo conhecimento, ter uma preocupação com a parte social e socializante não só para os organizadores, mas também para os produtores da arte: os artistas e a sua interacção com o público.
Todas estas considerações são tentativas de entender o nosso mundo tão fragmentado e o papel das Bienais de Arte deverá estar a meu ver, precisamente nesta linha de descodificação global da arte e da complexidade das sociedades contemporâneas. Sem apresentar uma conclusão demasiado objectiva, tarefa esta quase impossível em matéria de arte, sem encontrar uma fórmula que resolva as questões levantadas, parece-me que apesar disso, é necessária uma reflexão sobre a gravura no campo ampliado, apontando diversas perspectivas para a subsistência e autonomia da gravura como técnica tradicional, mas também, sobre as vantagens dela se aliar a outras linguagens. É precisamente no equilibrismo sobre esta linha de confronto e através dos “malabarismos” criativos dos artistas, que a gravura pode encontrar o seu circo e projectar-se sem equívocos ou inferioridade no contexto da arte contemporânea.
O Diretor e Curador da Bienal,Nuno Canelas
Curriculum Vitae - Nuno Canelas
NUNO CANELAS (Portugal) nasceu em Alijó, no dia 19 de Janeiro, 1968.
FORMAÇÃO: 2007-2010-Mestrado em Arte Contemporânea pela Universidade Católica Portuguesa – Escola das Artes - Porto;
2002-2004-Licenciatura em Artes Plásticas – Pintura pela (E.S.A.P.) - Porto;
1997-1998-Profissionalização em Serviço para o Ensino Artístico (UTAD) - Vila Real;
1992-1995-Curso Superior de Desenho pela (E.S.A.P.) - Porto;
ACÇÕES DE FORMAÇÃO: 2008-Workshop de Gravura Japonesa - técnica CHINE-COLLÈ com orientação de Mami Higuchi - 30º Aniv.º Geninação Porto/Nagasaki - Matriz - Porto; 2003-Workshop de Xilogravura Tradicional Japonesa - UKYO-E (Mestre Hiroshi Maruyama) – AICART - Porto; 2000-Curso de Técnicas de Impressão com a gravadora Irene Ribeiro - Cooperativa Árvore - Porto; 1998-Workshop de fotografia – U.T.A.D.e Instituto Português de Fotografia – I.P.J. Vila Real;
FUNÇÕES/PROJECTOS CULTURAIS: 2018- 1ª Bienal Internacional de Pintura a Óleo de Dafen - Museu de Arte de Dafen - Shenzen - China;
2018 - Convidado da 9ª Trienal Grágica de Bitola 2018 - Museu de Bitola - Macedônia - Prémio Honorário pelo contributo para as Artes Gráficas no Mundo;
2017 - Curador/Comissário convidado em representação de Portugal - DI CARTA/ PAPERMADE – 3ª edição – Bienal Internacional Papermade Art Work Exhibition – Schio – Italia;
2017 – Convidado da 6ª Bienal Internacional de Gravura de Guanlan 2017 – Orador no Fóum/Conferência - “ What is Printmaking?—Print-related Art” – Guanlan (Shenzhen) – China;
2017 – Convidado para a abertura da 'Belt and Road International Printmaking Exchange Project'– Orador no Fóum/Conferência – Dunhuang – China e na Exposição na YAC Print Base - Tianjin (Pequim) – China;
2001-2017 - Curador/Director da Bienal Internacional de Gravura do Douro e fundador do Núcleo de Gravura de Alijó;
2001-2017 - Comissário geral e Júri da Bienal Internacional de Gravura do Douro desde a sua fundação em 2001;
2013-2017 - Curador/Director da GLOBAL PRINT – Exposição Internacional de Arte Gráfica;
2013 – Convidado da 17ª Bienal Internacional de Cerveira e Exposição Individual na Galeria Projeto – V. N. De Cerveira – Portugal;
2008-2010 - Várias viagens de estudo e pesquisa para a dissertação de Mestrado a vários Museus de Nova Iorque (E.U.A.), Porto-Rico (E.U.A.), à Bienal de Veneza (Itália); Milão (Itália), Barcelona (Espanha), Paris (França), Londres (Inglaterra) e ArtBasel (Suiça).
2008 - Artista convidado para realizar uma Conferência sobre Gravura e Arte Contemporânea - Uri Gallery - San Juan - Porto Rico;
2006 - Comissário por Portugal da Bienal Internacional de Gravura de Antuérpia – Prémio Frans Dille – Museum Plantin- Moretus – Antuérpia – Bélgica;
2000 - Comissário da VII Bienal, 1ª Internacional de Gravura da Amadora;
1996 – 1998 - Vice-presidente da Fundação Casa - Museu Maurício Penha;
1995-2010 - Professor de Artes Visuais e Design Gráfico no Ensino Secundário;
1991/1993 - Projecto de pintura de cerâmica com o artista plástico Jaime Baptista na cidade de Gaia;
EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS/COLECTIVAS: Realizou 21 exposições individuais e participou em mais de cem exposições colectivas em Portugal e estrangeiro.